quinta-feira, 20 de março de 2014

Maior e mais antigo condomínio do continente, IAPI guarda parte da história de POA

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
As casas típicas do IAPI tinham de um a três quartos, cozinha, sala, despensa, banheiro e um galinheiro. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Por entre as edificações erguidas entre 1940 e 1950 residem as histórias de Porto Alegre e de centenas de pessoas que fazem da Vila IAPI um universo peculiar. Seus personagens colocam a capital gaúcha no mapa nacional da música e da arquitetura ou celebram amizades tão velhas quanto o próprio Estado Novo, época em que o bairro foi construído. O primeiro conjunto residencial do país levava em seu projeto a missão de sair do papel para entrar na história. Local dos industriários gaúchos que pagavam prestações baixas para os condomínios de um a três dormitórios com sala, banheiro, cozinha, dispensa e galinheiro, as construções formavam um lugar onde todo mundo era igual. Mas o IAPI ficou diferente do resto. Tornou-se modelo de uma arquitetura de cidade jardim; foi casa da pimentinha Elis Regina e do ex-vice-governador Antonio Hohlfeldt, e serve aos arquitetos e urbanistas como um desafio para aliar renovação à proteção histórica.
Com 2600 moradias construídas com financiamento popular do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), as casas foram concebidas sob uma percepção arquitetônica francesa; ao contrário dos demais IAPIs do Brasil, em Porto Alegre, menos era mais. Os prédios são baixos, enxutos, acomodariam todos os serviços necessários à população e, de quebra, seriam baratos. Se o IAPI nasceu popular, hoje ele se tornou uma referência mundial de estilo e urbanização.
Amizades de uma vida
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Dona Marisa, 62 anos, mora na mesma casa desde que nasceu. É amiga de infância de Elis Regina. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Dona Marisa e Dona Marta se conhecem desde que nasceram – lá se vão 62 anos de amizade. Se na infância elas se reuniam no alto do condomínio com outras vinte e tantas crianças onde brincavam de “rei e rainha”, “telefone sem fio”, “brincadeira do anel”, hoje elas se juntam nos mesmos bancos para tomar chimarrão. Dona Marta, 74 anos, morava na Plínio, de onde saiu depois de casar com o seu vizinho, melhor amigo do irmão, e ir morar ao lado de Elis, a Regina, na casa dos sogros.
“Éramos uma família. Era um Papai Noel, uma festa de natal, uma fogueira. Nunca morei em outro lugar, e não me imagino fora daqui”, revela Dona Marisa, 62 anos, que ainda hoje vive em frente à figueira bicentenária que é marca do bairro.
Marca também é a casa de número 21, onde nasceu Elis Regina.  Na casa ao lado da de Dona Marta, duas depois da de Elis, surgiu a primeira televisão do condomínio. Lá as crianças se reuniam para ver Rin Tintin – sob a condição de que tivessem tomado banho.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Dona Marta fez sua vida no IAPI: nasceu na Plínio, casou com o vizinho, melhor amigo do irmão, e mora há 20 anos na casa que pertencia aos sogros, ao lado de Dona Marisa. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Dona Marta lembra do dia em que o Golpe Militar foi anunciado na rádio, assim como lembra de quando o presidente Getúlio Vargas, gaúcho, veio a Porto Alegre inaugurar o bairro. “Lembro da minha irmã pedir ao meu pai para desligar o rádio antes de a Hora do Brasil começar, porque se algum militar visse a transgressão, eles entrariam na casa para prender alguém da família. Os homens, não as crianças”, reconta.
Dona Marisa lembra de ver Elis chegando de longe de mãos dadas com um rapaz e, ao se aproximar do condomínio, largando a mão dele. “Eu só escuto falar de a Elis ter sido namoradeira pela mídia, porque eu nunca a vi com alguém. A mãe dela era muito severa”, atesta a amiga de infância da cantora e possível guardiã dos segredos da amiga até hoje. E até hoje ela fala com a mãe de Elis.
Crescer no IAPI, mais do que criar amizades de uma vida, criou uma vida para Dona Marisa e Dona Marta. “Não precisamos sair daqui para nada. Temos tudo à volta”, aponta Dona Marisa. Dona Marta casou com o amigo de infância do irmão, que morava na casa ao lado da dela. A irmã da mãe de Dona Marisa morreu no bairro aos 115 anos, tendo visto todas as histórias do bairro crescer com ele. “Meu avô vinha de Uruguaiana e dizia se sentir confortável aqui no bairro. Não tinha diferença. Somos um universo paralelo, há qualquer coisa de cidade do interior aqui”, avalia Dona Marisa.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A figueira bicentenária é uma das marcas mais fortes do IAPI. Ao fundo, o condomínio de Dona Marisa, Dona Marta e Elis. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Para elas, a mudança do bairro ao longos dessas seis décadas é marcada pelo aumento do movimento do transporte público – no início do IAPI, era o bonde a única opção de transporte. Hoje com três linhas de ônibus e carros-lotação, sair do IAPI ficou mais fácil, mas nunca necessário. “Não penso em morar em outro lugar. Minha vida toda eu vivi isso aqui”, diz Dona Marisa.
Gerações da fotografia
Nikolaj Lenski é russo e veio ao Brasil na década de 1950 fugindo dos soviéticos. Sem saber português ou o que fazer na cidade, foi parar no IAPI, onde começou um trabalho de revelação de filmes em um estúdio improvisado embaixo da escada da sala da sua casa. Um dos seus primeiros clientes foi Edmundo Gardolinski que, além de ser o arquiteto responsável pelo Conjunto Residencial Passo D´Areia – vulgo IAPI -, o maior e mais antigo da América do Sul, era de descendência polonesa e gostava de fotografia. Gardolinski chamou Nikolaj (Nick) para ser o fotógrafo da inauguração da vila. “Foi Gardolinski que alavancou a carreira do meu pai”, lembra Eduardo Lenskij, o responsável pelo Estúdio Nick, o mais antigo estúdio fotográfico da cidade.
 | Foto: Nikolaj Lenskij/Acervo Foto Nick
O ex-presidente Getúlio Vargas participa da inauguração do bairro. | Foto: Nikolaj Lenskij/Acervo Foto Nick
Nick é responsável por uma das fotos mais célebres da abertura do IAPI, mas ficou mesmo conhecido pelo retrato que fez de Elis Regina, a figura mais célebre do bairro e, certamente, mais célebre do que Getúlio como ele aparece na foto de Nick.
Eduardo hoje é quem toma conta do estúdio, que é o mesmo desde 1954 – com o mesmo neon na frente. Ele e o filho são os fotógrafos oficiais do IAPI, e é virtualmente impossível não encontrar um rosto conhecido pelas paredes do estúdio, que colecionam exemplos do trabalho da família há três gerações.
Eduardo nunca morou no IAPI, mas resume sua vida ao bairro. Estudou no Colégio Becker à noite e, durante o dia, ajudava o pai no estúdio. Para ganhar mais dinheiro, fazia transporte das estudantes do bairro a universidade Unisinos na década de 1970. Casou-se com uma delas. O pai, o Nick, faleceu aos 58 anos. Eduardo está à frente do estúdio desde então – são 35 anos de fotografia dos moradores do IAPI.
“O bairro não mudou. Só o movimento mudou. As pessoas são as mesmas”, atesta o fotógrafo que eternizou a vida de centenas de moradores do bairro com suas lentes.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Foto Nick: há três gerações eles são os fotógrafos oficiais do IAPI. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Mobilizar pela revitalização
Pedro Lemos nasceu e cresceu no IAPI. Aos 60 anos, ele é marinheiro aposentado e presidente do Mobiliza IAPI, uma entidade que visa à melhora do bairro e sua futura conservação. Ficou afastado da área por oito anos, por motivos profissionais. A mãe ficou no mesmo apartamento, onde moram até hoje. A esposa de Lemos, de origem portuguesa, também. “Poderia ter ido morar em Portugal, mas a minha esposa adorou o IAPI”, revela.
Dentro do Mobiliza, Lemos foca em projetos que buscam a restauração e preservação de áreas históricas e a criação de serviços que abranjam a realidade atual da área. Estão em tratativas para manter o Postão do IAPI aberto 24 horas por dia, além de criar uma creche comunitária. “O papel da mulher mudou, ela trabalha, e a sua contribuição ao orçamento doméstico é essencial. Ela precisa de ajuda com os filhos”, avalia o presidente.
Outro projeto em tramitação no Orçamento Participativo é a criação de um centro comunitário para idosos, conta o aposentado, que garante existir no IAPI uma das maiores comunidades de idosos do país. O Mobiliza, criado em junho do ano passado, não é apenas uma mobilização que olha para o futuro do bairro, mas que mantém um compromisso com o seu passado. Várias das iniciativas de novos moradores que derrubam as casas originais para construir novas estão sendo combatidas pelo movimento.
Florir IAPI
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Avenida das Indústrias receberá um canteiro de flores pelo Projeto Florir. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A Avenida das Indústrias, uma das primeiras a ser pavimentadas no bairro, é o maior elo de ligação do IAPI com seus bairros vizinhos. A larga avenida de duas vias separadas por um canteiro central está prestes a ser revitalizada, enfeitada, embelezada. É a intenção do Projeto Florir, uma ideia que a Associação de Moradores da Vila levou à Escola Técnica Cristo Redentor no final do ano passado.
O Florir IAPI é liderado pela arquiteta e urbanista Cristina Guerreiro, professora do curso técnico de edificações da escola. O projeto é um reflexo da cultura do bairro; consiste na união de voluntários (formados pelos alunos de Cristina e a população de moradores do IAPI) num projeto que irá plantar flores por toda a extensão do canteiro da Avenida. A definição das espécies a serem cultivadas levou em consideração a história da vegetação já existente. “ Serão flores de médio porte, que harmonizarão com as grandes árvores que existem no local”, revela a urbanista.
O grupo de alunos que assina o projeto foi educado em IAPI. Aulas sobre a história e a arquitetura típica do bairro deram ao grupo base do que seria feito nos próximos seis meses para melhorar a área de convivência social. “As pessoas que vieram nos procurar ali queriam estar na rua. Essa é toda a ideia do projeto”.

Fonte: Sul21

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